terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

João Franco e a ditadura

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Perante o desprestígio dos dois grandes partidos, o Regenerador e o Progressista, e o fracasso dos seus sucessivos Ministérios em conseguir resolver os problemas nacionais, o rei D. Carlos resolveu apelar para uma terceira força partidária, cujos dinamismo e programa prometiam nova vida para a Monarquia. Assim chamou ao poder, em 19 de Maio de 1906, João Franco, um experiente parlamentar, que fora várias vezes Ministro e se tinha afastado do Partido Regenerador.
O programa do novo agrupamento partidário, o Regenerador-Liberal, sob a bandeira do «respeito sagrado pelas garantias individuais e a prática de um verdadeiro sistema representativo», insistia na correcção dos abusos tradicionais do poder, na responsabilidade ministerial, na independência do poder judicial, na descentralização, no desenvolvimento da instrução, no proteccionismo, na condenação do favoritismo, etc.
João Franco, rodeado por um grupo de homens competentes, honestos e bons técnicos, mas, na sua maioria, sem qualquer ligação ao poder político, pretendia governar «à Inglesa», pondo fim aos vícios da habitual administração portuguesa. O seu ministério, de cujos membros só ele tivera experiência governativa anterior, era quase todo formado por homens muito ricos, que ocupavam cargos de relevo em empresas e associações importantes.
Durante quase um ano, João Franco procurou governar dentro do quadro parlamentar e no respeito pelos direitos individuais. Nas eleições de 19 de Agosto de 1906 obteve a habitual maioria, a que se somavam os deputados progressistas, seus apoiantes conjunturais. Mas não conseguiu evitar que em Lisboa, onde o Partido Republicano se achava já solidamente entrincheirado, quatro deputados republicanos – os primeiros desde 1900 – fossem eleitos, juntando-se às oposições, a regeneradora e a dissidente progressista. Outro desaire, para João Franco, resultou das eleições autárquicas do Porto, em 4 de Novembro de 1906, onde os republicanos, coligados com alguns monárquicos oposicionistas, ganharam a câmara.

Em Novembro de 1906, João Franco cometeu o erro de levar ao Parlamento a melindrosa questão dos adiantamentos à Casa Real. O governo admitia que, ao longo dos anos, haviam sido feitos, pelo Ministério da Fazenda, «adiantamentos» de somas avultadas aos vários membros da família real, a serem deduzidas da respectiva lista civil. Como tais deduções nunca se tivessem integralmente realizado, acontecia que a família real devia ao Estado muitas centenas de contos, num total não cabalmente apurado.
Para resolver a questão, João Franco propunha um acerto de contas, com a privação perpétua de rendas de prédios pertencentes à coroa e arrendados ao Estado para diversos serviços públicos, e a venda ao Estado do iate real Amélia. Propunha também o aumento da lista civil do rei de 100 para 160 contos.
Os resultados parlamentares desta questão, foram desastrosos, quer para o Governo quer para a própria Monarquia. Os republicanos tiraram todo o partido das revelações feitas, acusando a família real e os governos de defraudarem os cofres públicos e exigindo a abdicação do monarca. Multiplicaram-se, por todo o país, os comícios e as manifestações de protesto. A imprensa, republicana, e dissidente-progressista, não dava tréguas nos seus ataques ao Governo e às instituições. João Franco preparou uma nova lei de imprensa, que fez votar no Parlamento e que, pelo seu carácter repressivo, ficou conhecida como «lei contra a imprensa».
Em Março de 1907, a pretexto da reprovação, tida por injusta, de um candidato a Doutoramento na Universidade de Coimbra, os estudantes entraram em greve que, rapidamente, alastrou a todo o país e se converteu em manifestação política contra o Governo. Com a conivência do rei, João Franco decidiu-se a entrar em ditadura, fazendo encerrar as Cortes (11 de Abril de 1907) e dissolvê-las (10 de Maio de 1907), sem a habitual marcação do próximo acto eleitoral.
Apesar de uma certa popularidade, sobretudo nos seus começos, o franquismo era acima de tudo apoiado por parte da oligarquia financeira e económica, não dispondo de raízes nas massas populares. Não controlava nem as cidades nem o campo. Era um movimento de homens esclarecidos, um protesto elitista contra o descrédito dos partidos rotativos, mas estava longe de se poder considerar um movimento nacional. O seu grande sustentáculo era o rei. Não tinha, por isso, condições de se medir com a dinâmica populista republicana, solidamente escorada nas cidades, controlando Lisboa e Porto, e enquadrada, ainda por cima, pela Maçonaria e pela Carbonária. Para se sustentar, carecia de força e da repressão.
E foi, de facto, pela força e pela repressão, que João Franco “ o Turco” governou de Abril de 1907 a Fevereiro de 1908. Começou por remodelar o ministério e depois tentou domar a imprensa num longo cortejo de querelas, suspensões e julgamentos que só contribuíam para a popularidade dos jornalistas e para o aumento das tiragens dos jornais.
Liberto da fiscalização e da obstrução das Cortes, o governo pôs fim também à oposição das autarquias, começando por dissolver a Câmara Municipal de Lisboa, adiando sine die as eleições autárquicas gerais e dissolvendo por fim todas as juntas gerais, comissões distritais, câmaras municipais e juntas de paróquias do país, que fez substituir por comissões administrativas.
Multiplicou também as prisões e detenções sem culpa formada, remodelando o Juízo de Instrução Criminal e a Polícia Civil de Lisboa e aumentando-lhes as competências. Proibiu ainda a actividade política dos centros republicanos, retirando-lhes o direito de reunião e fazendo encerrar vários deles.
No âmbito de medidas reformadoras e progressistas, João Franco preocupou-se com questões de relevo, como o bem-estar social, aumento dos vencimentos de funcionários públicos, sargentos e praças das forças armadas; descanso semanal obrigatório; aposentações para os trabalhadores; a educação (instrução militar obrigatória, construção de escolas, reorganização da instrução pública); o aumento das receitas públicas; a contracção de um empréstimo destinado a vários melhoramentos; a suspensão do plantio de novas vinhas; etc.
A reacção contra a ditadura foi imediata e generalizada. Os diversos partidos protestaram com veemência, quer junto do rei quer da imprensa. Juntaram-se-lhes os deputados e os pares do reino, o Conselho de Estado, as câmaras municipais, começando pela da capital, a Associação comercial de Lisboa e diversos outros corpos públicos. O poder judicial entrou também em conflito com o governo, negando alguns juízes validade às decisões ministeriais, o que levou a um decreto ad hoc obrigando-o a submeter-se. Várias personalidades importantes protestaram contra a ditadura e o rei, alistando-se nas hostes republicanas.
Na rua, multiplicaram-se os comícios, as correrias e os tumultos, motivando quase sempre a intervenção das autoridades, que espancavam e prendiam. A repressão à imprensa levou à publicação clandestina de vários periódicos, panfletos e livros. Em Novembro de 1907, republicanos e dissidentes, enquadrados pela Maçonaria e, sobretudo, pela Carbonária, começaram a conspirar contra o governo e o rei. Aceleraram-se a aquisição de armas e o fabrico artesanal de bombas. O governo descobriu que alguma coisa se preparava, prendendo vários implicados, entre os quais o deputado António José de Almeida, um dos dirigentes carbonários. Mesmo assim, a conspiração foi para a frente, saldando-se num completo fracasso, com a prisão ou mandato de prisão para os seus principais chefes.
A resposta do governo foi intensificar a repressão. Um decreto assinado em 31 de Janeiro de 1908 previa a expulsão do país ou a deportação para as colónias de todos os implicados em conspirações ou delitos contra a segurança do Estado, o que provavelmente se aplicaria aos chefes e militantes oposicionistas mais conhecidos e activos. Mas, logo a 1 de Fevereiro, quando a família real voltava do Alentejo, um atentado à bala vitimou D. Carlos e o príncipe herdeiro D. Luís Filipe, colocando no trono o infante mais novo, D. Manuel.


A instituição da República


A seguir ao Regicídio vem a bonança com D. Manuel II, ou seja, a pacificação do país mediante maior tolerância e liberdade. Desacreditados o franquismo e os demais movimentos monárquicos, uma tal política reverteu em proveito dos republicanos.
Na verdade, os anos de 1908-1910 presenciaram a ascensão fulgurante do seu partido, que passou a controlar ou a desempenhar papel de relevo nas cidades e vilas de Portugal, multiplicando por toda a parte adeptos, comícios e organização. Concomitantemente, Maçonaria e Carbonária viram crescer o número das suas iniciações, com uma quase total coincidência entre os respectivos ideários e objectivos e os ideários e objectivos do Partido Republicano.
A partir dos finais de 1909, os governantes, assustados com a dimensão do movimento republicano, que tendia a avassalar a própria cultura reinante, recomeçaram a repressão com algumas suspensões de jornais e mandatos de prisão contra jornalistas. No 10º Congresso do Partido Republicano, realizado em Setúbal em Abril de 1909, fora decidido mandatar o directório eleito para fazer a República por qualquer meio. Recomeçou portanto, a sério, uma conspiração organizada para o derrube do regime, onde a Carbonária desempenharia a força de choque principal. Os aliciamentos de oficiais, sargentos e praças, tanto no Exército como na Marinha, intensificaram-se. Em Abril de 1910, no 11º Congresso Republicano, foi nomeada uma comissão para se deslocar a Londres e a Paris a fim de sondar as intenções dos respectivos governos no caso de ser proclamada a República em Portugal.
Teixeira de Sousa, regenerador que chefiava o ministério saído das eleições de 28 de Agosto de 1910, tentou conjurar o ímpeto republicano, navegando nas mesmas águas dele no que dizia respeito a uma questão de grande impacto, a questão clerical. Preparou, assim, uma série de medidas contra as congregações religiosas, nomeadamente os Jesuítas. Mas era tarde de mais. A revolução republicana estava pronta a eclodir e tivera já duas datas marcadas. O assassinato de um dos seus mais prestigiados chefes, o cientista e médico Miguel Bombarda, em 3 de Outubro, não impediu que fosse posta na rua às primeiras horas do dia 4 de Outubro, triunfando com pouca resistência no dia 5 de Outubro. Como curiosidade refiro que a República foi proclamada em Loures no dia 4 de Outubro, um dia antes de o ser em Lisboa.


Mitos e ideais


A República surgiu e triunfou em Portugal ao abrigo de dois mitos: o da Pátria decadente, «à beira do abismo», «conduzida pela Monarquia à ruína e à desonra», e o da possibilidade do ressurgimento da Pátria com novas instituições.
A decadência da Pátria devia-se sobretudo a múltiplos factores morais, todos eles incorporados na Monarquia: o jesuitismo, a «corrupção moral», o servilismo, os «preconceitos e os privilégios das castas dominantes» e outros conceitos mais ou menos vagos, difundidos e partilhados pela opinião pública. Por isso aspirava-se a uma República «pura» de «imenso e grande ideal». Mas rejeitava-se que fosse apenas uma corrente filosófica a determinante do ideário republicano. Para muitos, a República era a «consequência lógica e fatal» da própria evolução histórica portuguesa, caracterizada por instituições e costumes «fundamentalmente democráticos».
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